sábado, 1 de outubro de 2011

A redoma estilhaçada(numa pequena, mas sincera homenagem que presto hoje à grande ministra Eliana Calmon e à sua luta pela transparência, republico aqui este meu artigo de 2007, ano em que foi originalmente levado ao público pela "REVISTA DE REPENTE", de Teresina-PI, do bimestre maio/junho de 2007/ano XIII - nº57)




Láurence Raulino(*)


Em 1987, logo que os constituintes deram início aos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte eleita no ano anterior, a imprescindível retirada “de dentro”(perdão pela impropriedade) do ordenamento jurídico daquilo que na época denominou-se, com propriedade, “lixo autoritário” – e a “remoção do lixo autoritário” vinha a ser o processo correspondente àquele objetivo – fora colocado, no âmbito da mesma ANC, como tarefa prioritária desta, naturalmente precedida de discussão para desaguar na respectiva decisão. E assim foi, ao longo do percurso pelo qual tramitaram os múltiplos trabalhos desenvolvidos pela referida Assembléia, dali resultando uma proposta de texto constitucional que buscava inserir os mais variados e surpreendentes temas – apropriados ou não para uma Carta Política –, os quais pretendiam, então, atender aos grandes anseios nacionais, sintetizados no desafio de erigirmos uma nova ordem jurídica e política que passaria a se fundar, exclusivamente, em princípios que deveriam edificar o nosso Estado Democrático de Direito.

Não obstante o louvável esforço dos constituintes no trabalho de “remoção do lixo autoritário” inserido no ordenamento jurídico de então, fixado dentro e fora do texto constitucional de 1967/69, ainda permaneceram, no âmbito do arcabouço jurídico infra-constitucional, alguns “resíduos legais” daquele lastimável “lixo jurídico”, tais como a “Lei de Imprensa”(Lei nº5.250, de 09/02/67), o Decreto-Lei Nº911/69, a Lei de Segurança Nacional(Lei nº7.170/83), dentre outros, sendo esses aqui citados apenas a título de ilustração. Segundo a hermenêutica absolutamente hegemônica, mas nem por isso questionada aqui e acolá, referidos “resíduos” teriam sido “recepcionados” pela Constituição Federal. Inobstante, penso que tão nefasto à vida democrática brasileira quanto a permanência desses “resíduos” infra-constitucionais do “lixo autoritário” em nosso ordenamento jurídico são aqueles paradoxos políticos, reciclados e mantidos no texto constitucional do Estado brasileiro, como exemplo a garantia constitucional da vitaliciedade da magistratura, isso feito e sempre renovado desde a nossa primeira Constituição Federal republicana, a de 1891, até a vigente Carta de 1988.

Posso até admitir como razoável e justificável – dadas as condições históricas e objetivas existentes em 1891, depois projetadas por pelo menos mais quatro/cinco décadas do século XX – a herança espúria e extravagante, que veio a ser acolhida em um texto constitucional republicano, da figura – jurídica e também política, óbvio – inadequada, imprópria e arcaica da vitaliciedade da magistratura, erigida, então, em garantia constitucional. No entanto, a partir dali, sob o questionável argumento da necessidade de proteção do juiz – que, com aquela, supostamente ficaria livre de injunções políticas e dos mais diversificados interesses, dentre estes os da mesma política, os paroquiais, os econômicos, etc – e do jurisdicionado – que teria um julgador independente e autônomo para decidir, exclusivamente, conforme o direito – criou-se toda uma cultura de distanciamento entre ambos. Desde então, vive o juiz brasileiro “protegido” por uma verdadeira redoma, tal como a santa. Acontece que as redomas quebram-se.

Como instituto básico e fundamental do regime político vigente anteriormente no país, a Monarquia, e dali originário – uma peça de museu, portanto –, a figura jurídica e política, a um só tempo, da vitaliciedade da magistratura, jamais, com efeito, poderia ter sido mantida no texto constitucional da Carta Política de 1988. A começar pela simples razão de ser o Estado brasileiro uma República – Federativa –, fundada no sufrágio universal, por meio do voto direto, secreto e periódico. Depois por ser o mesmo regime político representativo e eletivo, sem ressalva disso para nenhum dos três poderes, conforme previsão constante nos arts.1º, parágrafo único, e 2º, do texto constitucional.

Os apressados hermeneutas que querem manter o juiz na redoma da vitaliciedade – esta seria, na verdade, a matéria-prima da dita campânula –, supõem que pelo simples aspecto de existir o concurso público de provas e títulos para o cargo inicial de juiz, bem como a carreira da magistratura, referido cargo teria sido excluído da exigência de observância do princípio da representação eletiva. Outros hermeneutas, com equívoco similar, imaginam que o Poder Judiciário, ao contrário dos outros dois – Executivo e Legislativo, óbvio –, seria um “poder técnico”, categoria que logicamente não existe no Estado Democrático de Direito, no âmbito do qual não poderia haver aquilo de “poder técnico”, extravagância somente admissível em regimes ditatoriais. No Estado Democrático de Direito todo o poder estatal é político.

Desde a CPI da Corrupção no Judiciário, de 1999 – aquela que revelou o “Lalau” e a quadrilha em torno dele, além de outras falcatruas –, venho questionando, com base em interpretação sistemática do texto constitucional, principalmente – focada, em especial, nos pontos deste acima destacados – a legitimidade do Poder Judiciário brasileiro, isto através de artigos, ensaios e textos esparsos publicados pelos mais diferentes meios – eletrônicos/virtuais, revistas técnicas de direito, palestras, etc, e até mesmo através de um opúsculo publicado em 2001, este com pontos que eu já tenho há muito por superados em vários aspectos.

Na linha de raciocínio acima, no mês de setembro de 2003, no artigo que escrevi para a revista eletrônica Consultor Jurídico – CONJUR (www.conjur.com.br/), sob o título QUAL FUTURO?(publicado, posteriormente, com este mesmo título em vários outros sites Brasil adentro), que tratava de vários assuntos da conjuntura política de então – uma verdadeira miscelânea temática –, voltei, mais uma vez, a questionar a legitimidade do Poder Judiciário brasileiro, mas desta feita no contexto da corrupção historicamente reinante em nosso país, já então com o crime organizado atuando fortemente na cúpula do Estado brasileiro, no âmbito dos três poderes, etc, e lá falava eu da poderosa máfia dos combustíveis, dentre outras áreas do crime organizado. Sugeria, então, que para combatê-lo o Brasil, ao contrário de sugestões outras, autoritárias e que seguem na contramão da transparência, precisava era de mais democracia, de mais transparência, pois não se combate o crime nas trevas, mas sob a luz – principalmente sob as luzes da democracia, etc.

Eis que mais uma vez, com a “Operação Furacão”, da Polícia Federal, o Poder Judiciário brasileiro volta à berlinda, questionado por toda a sociedade, em seus mais diferentes setores e áreas, face ao envolvimento de pequena, mas, inobstante, representativa parcela de alguns dos seus mais eminentes membros – juízes e desembargadores federais, lamentavelmente, e até um ministro de tribunal superior, etc, isso ad cautela, óbvio, em respeito ao princípio constitucional da inocência... –, com o crime organizado em nosso país. Segundo aquilo que nos veio pela mídia, a bandidagem parece ter, enfim, chegado à cúpula do Poder Judiciário brasileiro, quebrando, assim, a tal redoma em que o Estado brasileiro vem, desde o Império, guardando os seus juízes.

Chegou a hora, portanto, de tirarmos os nossos juízes da redoma em que os vimos guardando, como se eles fossem santos, como se não devessem, como previsto e fixado no texto constitucional, serem crivados(como o são os membros dos outros dois poderes) pelas urnas, por meio do sufrágio universal. Mantê-los sempre na redoma, como fazem os católicos com as imagens das santas, cedo ou tarde daria mesmo nisso, e vejam que pode até vir ainda coisa pior por aí – sempre existe essa possibilidade, infelizmente.

Para abrir-se a “caixa-preta” do Judiciário, todavia, não será com fórceps, mas com a salutar luz da participação dos cidadãos e das cidadãs no processo de escolha dos juízes, com a adoção e implementação do financiamento público de campanha no âmbito do mesmo, sem partidos políticos, etc, como ocorre alhures. Ao contrário, no lugar dos partidos políticos e de suas convenções, o concurso público de provas e títulos, com a carreira da magistratura o seguindo, mas logo depois do estágio probatório a submissão do aprovado neste ao voto amplo e irrestrito da cidadania. O Brasil estaria com isso criando mais um modelo de sucesso para o mundo, numa experiência inovadora e revolucionária para os costumes e hábitos políticos, além de observar o fixado em sua Carta Política(art.1º, parágrafo único), em relação ao tema, fazendo com que, ao mesmo tempo, referido poder pague, também, a sua contrapartida no processo de Judicialização da Política. Isso tudo é o que se busca com a PEC – Proposta de Emenda à Constituição Nº526/06, atualmente arquivada na Câmara dos Deputados.

Tiremos, portanto, os nossos juízes da santa redoma antes que seja tarde – antes que os estilhaços dela se voltem contra toda a sociedade.

(*) – Escritor – autor de ensaios políticos e literatura ficcional – e articulista, Láurence Raulino, 50, também é procurador federal junto à Escola da Advocacia-Geral da União, em Brasília.

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