quarta-feira, 7 de março de 2012

Anápolis deve ser reintegrada ao Estado laico e republicano, integralmente.



Láurence Raulino(*)

O jornal Correio Braziliense desta quarta-feira, na página 8 de sua edição deste 07 de março de 2012, nos traz uma curiosa e bizarra matéria sob o título "Anápolis proíbe aborto autorizado pela Justiça" . O texto gira em torno de assunto abordado logo no primeiro parágrafo, e versa do seguinte:

"Uma emenda aprovada pela Câmara Municipal da cidade, distante 160km de Brasília, suprimiu o artigo 228 da Lei Orgânica do Município (Loma), que previa a realização do aborto legal pelos hospitais públicos. A mudança teve o apoio dos 15 vereadores de Anápolis, incluindo o autor do projeto, Pedro Mariano (PP).Por se tratar de uma alteração na Loma, não é necessária a sanção do Executivo. Portanto, a norma vale desde a noite de segunda-feira,..."

Pelo que se depreende da matéria do Correio Braziliense, o edil que foi o autor da polêmica emenda supressiva à Lei Orgânica de Anápolis é um líder católico bastante conservador, que não transige com a fé e os seus preceitos, mesmo em assuntos e temas protegidos pelo interesse público - o artigo 28 do Código Penal determina que não se pune aborto praticado por médico, caso não haja outro meio de salvar a vida da gestante, ou se a gravidez resulta de estupro, havendo consentimento da gestante -, pois declara, ainda segundo o prestigiado diário de Brasília, que, em caso de estupro, a mulher estuprada tem que assumir o filho gerado, que não teria culpa pelo crime, de responsabilidade do estuprador, o único a ser punido...

Prosseguindo, a matéria do Correio Braziliense informa que o advogado Henrique Tibúrcio, presidente da OAB-GO, vai "...recorrer à Justiça para anular os efeitos dessa lei ou para deixar claro que o município, embora tenha suprimido o trecho da lei orgânica que tratava do assunto, continua obrigado a prestar o atendimento”, segundo declaração do próprio, que ainda observa: “Essa norma é inconstitucional na medida em que dificulta o acesso a um atendimento que já está garantido, independentemente de o poder público concordar ou não com o aborto nessas condições."

Deve ser observado que a alteração legislativa processada na Lei Orgânica do Município pela Câmara Municipal de Anápolis não desautoriza apenas o aborto daquele modo e forma que vem sendo objeto de questionamentos, por parte tanto dos que são contra quanto dos que são a favor da prática, e que assim põe grupos feministas e determinados profissionais da área de saúde em sua defesa, de um lado, e grupos religiosos, principalmente católicos, juntos com a Igreja Católica, de outro lado. Não, o caso de Anápolis torna-se mais grave e inusitado em razão de ser uma medida legislativa municipal que coloca-se em oposição ao próprio ordenamento jurídico da pátria brasileira, ou seja, da República Federativa do Brasil - por sua Carta Política, no que concerne ao direito de todos à saúde, pelo Código Penal(Art.28), destacadamente, bem como em previsões outras, nos mais diversas diplomas legais do direito infraconstitucional -, ao desautorizar o aborto legalmente permitido.

Ou seja, a iniciativa da Câmara Municipal de Anápolis confronta o ordenamento jurídico do país, em clara e inequívoca desobediência à própria Carta Política e ao Código Penal, especialmente, e dali abre um perigossíssimo precedente político, revestido no acintoso desrespeito às normas jurídicas nacionais, de um modo tal que, por via transversa, rompe com o próprio pacto federativo, o que não é admissível, sob nenhuma hipótese, pois o município, embora goze de autonomia - que é relativa -, integra um ente federativo - o Estado de Goiás, no caso -, o qual, por óbvio, não goza de soberania, igualmente a um país..., como a República Federativa do Brasil, a única pessoa jurídica de direito público internacional do Estado brasileiro.

Ademais da gravidade do problema jurídico-político apontado no parágrafo imediatamente acima, há ainda a questão religiosa assumida pela Câmara Municipal de Anápolis, absolutamente incompatível com o caráter laico e republicano do Estado brasileiro. Isso significa que, embora assegure a livre manifestação do pensamento e a plena liberdade de expressão, nos limites da lei, ademais do direito assegurado a todos de se professar qualquer religião, fé, etc, ou não, nenhuma instituição pública estatal, de qualquer um dos tres planos federativos - União, Estados e Municípios - poderá promover a defesa ou os interesses desta ou daquela religião, fé... -por assim dizer... -, embora aos seus dirigentes - os membros dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário -, aos servidores públicos e aos cidadãos, indistintamente, de modo geral, seja assegurado o direito irrestrito de professar qualquer fé religiosa, filosófica, etc, ou mesmo fé nenhuma.

Sabe-se que "aborto" é assunto polêmico, e, portanto, extremamente controvertido, mas esse caso de Anápolis extrapola o debate que hoje se trava no âmbito da sociedade brasileira, como registrado acima, e que vem sendo objeto de questionamento judicial, com destaque para uma demanda ainda inconclusa na Corte Suprema do país, ou seja, no Supremo Tribunal Federal, o qual terá de se manifestar definitivamente, ou não, sobre o assunto nos próximos dias, na questão dos anencéfalos. Quanto a isso, há de se acreditar, por induvidoso, em princípio, e plenamente razoável, que o julgamento do STF dar-se-á com base no conhecimento científico, muito embora, segundo nos parece..., ainda não tenha posição conclusiva sobre o tema, mas a fé religiosa, especialmente, não transige com o problema dali originário, e assim tenta submeter o Estado laico e republicano(o ex-procurador-geral da República Claúdio Fonteles, assumidamente católico e conservador quanto à questão do aborto, tentou fazer valer a sua fé ali), como se fez na bela e progressista - em especial materialmente falando, eis que não mais em todos os aspectos da vida política e social, e isto é lamentável, mas forçoso observar, nas circunstâncias... - cidade goiana, segundo a matéria do Correio Braziliense.

Pessoalmente, ainda não tenho posição conclusiva sobre "o tema do aborto", pois aguardo uma definição da ciência quanto ao efetivo e induvidoso início do ser humano, como tal e conceitualmente..., dentro ou fora do ventre materno, conforme se permite originá-lo, Brasil adentro e mundo afora. Não obstante, eu não posso admitir, como razoável e politicamente coerente que um Estado laico e republicano, no caso a Republica Federativa do Brasil, por qualquer uma de suas unidades federativas, ou por quaisquer de suas partes, então, venha assumir a defesa de determinada igreja; seita; fé... Mas, infelizmente, o nosso país parece caminhar rumo àquilo que poderia ser visto como um indesejável "Irã cristão", com tantos governantes - administradores, magistrados, parlamentares... -, partidos políticos e instituições voltados à defesa de convicções católicas; evangélicas/protestantes; umbandistas... Isso, óbvio, vai contra a Constituição e os seus fundamentos.

Vamos buscar, então, reverter essa tendência maléfica aos interessess republicanos, mas apenas pelas saudáveis guerras jurídica e de mobilização da cidadania, começando logo por Anápolis, que deve ser literalmente reintegrada à União e à República Federativa do Brasil, das quais foi de certo modo apartada, em desfavor de muitos e relevantes interesses, imediata e principalmente das mulheres, das mais pobres e sem meios..., que não os do Estado(no caso o Município de Anápolis), apenas, para defendê-las..., de uma gravidez indesejada, como no caso de um estupro, segundo o previsto no Código Penal Brasileiro, ali "revogado", por sua Câmara Municipal.

(*) - Advogado, articulista e escritor.

Um comentário:

  1. Temo pelo futuro do Brasil... Não sou contra religião, apesar de desferir severas críticas contra as mesmas, entretanto observo assim como outras pessoas nesse pais, principalmente as que não tem religião, que este país esta se tornando religioso demais, isso não seria problema se a religião ficasse fora da política, coisa que não acontece. Temos partidos religiosos, políticos religiosos... A laicidade do estados permanecerá ?

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